quarta-feira, 10 de fevereiro de 2016

CARNAVAL É RELIGIÃO, MAS NÃO TEM NADA A VER COM A VERDADEIRA FÉ CRISTÃ

As mais variadas religiões sempre fizeram parte do imaginário do carnaval Foto: André Mello / Editoria de Arte


O artigo abaixo foi publicado no site do G1 e é de autoria de Stéfano Salles

CARNAVAL E RELIGIÃO: A MISTURA ENTRE FÉ E FOLIA

Relação ganha força após apoio da arquidiocese à Estácio de Sá

As mais variadas religiões sempre fizeram parte do imaginário do carnaval - André Mello / Editoria de Arte

POR STÉFANO SALLES

RIO - As cores do pavilhão carregado pela porta-bandeira, cortejada com elegância pelo mestre-sala, são as mesmas do padroeiro. No início do carnaval carioca, era possível reconhecer o orixá de cada agremiação apenas pelo ritmo do toque das caixas da bateria. Nos ensaios da atualidade, os sons ainda estão presentes e são comuns os pontos de umbanda e candomblé, entoados como proteção. As tradições transformaram as escolas de samba em bastiões de resistência da cultura africana, mas elas sempre se mantiveram abertas a fiéis de outros credos. Uma convivência que nem sempre fez por merecer nota 10 em harmonia.

Carnavalesco no xadrez

Proibida pela Arquidiocese do Rio, escultura do Cristo Mendigo arrebatou o público no carnaval de 1989, mesmo coberta por sacos de lixo - Arthur Cavalieri/7-2-1989 / Agência O Globo

Católico fervoroso, o carnavalesco Chico Spinosa não esquece o carnaval de 2000, quando uma escultura de Nossa Senhora dos Navegantes o levou para o xadrez da 4ª DP (Central). A imagem seria utilizada no desfile daquele ano, que tinha como enredo “Terra dos Papagaios... navegar foi preciso!”, mas foi contestada judicialmente pela Arquidiocese, que acusou o artista de vilipêndio de objeto de culto religioso.

— Foi uma loucura. A sala onde fiquei tinha banco, cadeira, mas também grades. Eu fiquei em uma cela! Saí duas horas depois, mas a escultura só foi liberada no dia seguinte, levada pela bateria da escola, que seguiu em procissão até o barracão, na Avenida Venezuela. Foi lindo — lembra Spinosa, crime com pena de um a 12 meses de detenção e multa. A obra acabaria fora da festa.

A tumultuada relação entre as escolas de samba e a Igreja Católica teve como clímax a proibição do Cristo Mendigo de Joãosinho Trinta, no desfile da Beija-Flor, em 1989. Naquele ano, o carnavalesco cobriu a escultura com sacos pretos e ela foi à avenida com a inscrição: “Mesmo proibido, olhai por nós”, e ficou com o segundo lugar. No desfile das campeãs, a escola tirou os plásticos e revelou a imagem, para delírio do público.

Arena de tradições

Baianas da Imperatriz Leopoldinense no desfile das campeãs de 2011 - Fabio Rossi /12-03-2011 / Agência O Globo

Além das referências às religiões de matriz africana, as escolas de samba preservam elementos de sua cultura, como o respeito à ancestralidade, visível na ala das baianas e na velha guarda. Os segredos dos desfiles, os carnavalescos escondem a sete chaves em seus barracões, como pais de santo que preservam do público não iniciado os fundamentos da religião. Durante o carnaval, os templos não abrem: é o lorogun, período de descanso que marca o início de um ano litúrgico.

Apesar de várias composições anteriores fazerem referências diretas e indiretas à africanidade, a primeira leva de sambas-enredo dedicados aos orixás e religiões do continente surgiu em 1975, com a Unidos da Tijuca, que apresentou na avenida a “Magia africana no Brasil e seus mistérios". No ano seguinte, o Império Serrano apresentou o enredo "A lenda das sereias, rainhas do mar", e há quem garanta que Iemanjá teria incorporado em diversos componentes da agremiação da Serrinha durante o desfile, o que teria atrapalhado a evolução e proporcionado um desfile mais lento. Professor da UFRJ respeitado nas áreas de pesquisa de carnaval e religiosidade, Luiz Antônio Simas não duvida, mas acha improvável.

— É impossível dizer se isso aconteceu, mas no carnaval há uma cultura de oralidade que propaga essas coisas. É um espaço muito propenso para fantasias. Também há quem diga que ocorreu algo semelhante com a Grande Rio em 1994, quando a escola fez uma homenagem à umbanda, com "Os santos que a África não viu". Essas histórias podem ser fruto da criatividade dos oradores, mas o certo é que, atualmente, ninguém faz um enredo desses sem tomar cuidados e ouvir um pai de santo — analisa.

Em harmonia com o além

O pai de santo Osmane d'Odé é diretor espiritual do Salgueiro e acompanha os trabalhos feitos na quadra e no barracão da escola, na Cidade do Samba - Guilherme Leporace / Agência O Globo

Mais do que acolher foliões, as escolas buscam fomentar a pluralidade religiosa. Este ano, o Salgueiro vai apresentar o enredo “A ópera dos malandros”, inspirado no espetáculo de Chico Buarque, repleto de referências a Zé Pelintra, entidade associada à boemia. Há dois anos, a escola tem um diretor espiritual: o pai de santo Osmane d’Odé. Ele guia a presidente Regina Celi nos momentos de indecisão e busca proteger a agremiação de turbulências.

— Não tem mistério: eu sou uma espécie de conselheiro da presidente e busco manter a escola equilibrada. Faço aconselhamento, banhos e ofereço ajuda espiritual, tudo o que um pai de santo faz, mas as decisões cabem sempre à presidente. O segredo está na simplicidade: não há o que inventar — ensina o líder religioso, que acompanha os trabalhos na quadra da escola e na Cidade do Samba.

A africanidade esteve presente no último título do Salgueiro, em 2009, quando a vermelho e branco contou a história do tambor.

O padre cai no samba

Fanático pelo Salgueiro, o padre Wagner Toledo desfila pela escola desde 2003 - Fabio Rossi / Agência O Globo

Osmane não é a única liderança espiritual respeitada no cotidiano do Salgueiro. O padre Wagner Toledo, da Igreja Santa Rita, desfila pela agremiação religiosamente desde 2003, quando a diretoria buscava um padre salgueirense para celebrar a missa de 50 anos da escola. Antes do seminário ele era componente da agremiação e chegou a duvidar da aptidão para a vida religiosa.

— Pensava: como posso ser padre com essa paixão pelo carnaval? Mas a inclinação falou mais alto. No seminário, não tinha televisão, rádio, nada para acompanhar os desfiles. Algumas vezes eu recebi liberação para acompanhar a apuração. A ansiedade era enorme — revela.

No início, a participação do padre nos desfiles foi vista com desconfiança, superada com a aproximação das personalidades do carnaval à igreja. Frequentemente, ele realiza as missas de aniversário da escola e de São Sebastião, padroeiro do Salgueiro, e de São Jorge, padroeiro da Estácio.

— Eu tenho consciência de que ali não sou apenas eu mesmo: estou representando a minha instituição. Então, ultimamente, tenho desfilado junto com a velha guarda. Quando acaba minha participação, vou para o camarote. As pessoas me tratam como padre mesmo: pedem bênçãos, beijam a minha mão e me afastam do tumulto — afirma.

Assistente de Toledo, Kenny Erik, de 21 anos, estuda para ser padre. Ele torcia pela Mocidade, mas trocou de paixão.

— Sou Salgueiro. O padre me converteu — garante.

Berço de transformações

Enredo da Estácio sobre São Jorge tem o aval da Arquidiocese do Rio, algo inédito no carnaval - Antônio Scorza / Agência O Globo

A umbanda esteve presente desde o início da Estácio de Sá. Em 1928, antes de fundar a Deixa Falar, que daria origem ao Leão, documentos históricos revelam que Ismael Silva teria consultado os orixás para a nova empreitada. A religião ainda goza de prestígio na quadra da agremiação, com espaço dedicado a ela, no qual uma mãe de santo oferece consultas à diretoria. Em 1975, com o nome de Unidos de São Carlos, foi a primeira a ter problemas com a igreja, que proibiu o uso de imagens sacras e quase inviabilizou o enredo "Festa do Círio de Nazaré", que amargou o 10º lugar.

Neste carnaval, a vermelho e branco apresentará o enredo “Salve Jorge! O guerreiro na fé”, concebido por Chico Spinosa, que assinará o desfile ao lado dos jovens Amauri Santos e Tarcísio Zanon, dupla responsável por trazer o Leão de volta para o Grupo Especial após nove anos. Devoto do santo guerreiro e diante de um novo desafio de um carnaval religioso, Spinosa foi em busca do apoio da arquidiocese que, pela primeira vez, permitiu que uma escola de samba homenageasse um de seus símbolos.

— O cardeal dom Orani Tempesta aprovou a homenagem, e nós prometemos um desfile respeitoso, sem nudez ou vulgaridade. Esse é um enredo desenvolvido em parceria com a arquidiocese, que fez vistorias ao nosso barracão, avaliou as fantasias e acompanhou o processo. Isto do entendimento do Papa Francisco, de que é necessário aproximar o sagrado do profano para diminuir a violência. Todos ficamos muito felizes: esse carnaval é a redenção do Cristo Mendigo — celebra, como um milagre.

Desfile de tolerância

O carnavaleso Tarcísio Zanon posa diante do carro Catedral de São Jorge, que reproduz imagens de afrescos bizantinos - Fabio Rossi / Agência O Globo

Apesar do aval da igreja, o sincretismo não ficou fora. Além de uma escultura de São Jorge com quase seis metros de altura, a escola vai levar para a avenida uma imagem de Ogum. Caçula entre os carnavalescos do Grupo Especial, Tarcísio Zanon, de 28 anos, lembra que, diferentemente da homenagem feita pelo Império da Tijuca em 2007, com “O intrépido Santo Guerreiro”, a Estácio levará para a Sapucaí uma história de devoção.

—São Jorge já foi mostrado de forma sincrética. Agora, nós vamos contar a história dele, do nascimento na Capadócia à fé dos cariocas. Tudo com muito respeito, mas sem abrir mão das mulheres sexys, que fazem parte da cultura da festa. Muito deste apoio da igreja se deve às orientações do Papa Francisco, que busca aproximar o sagrado do profano, e ao diálogo permanente aberto pelo cardeal dom Orani — explica.

O professor Luiz Antônio Simas entende que a concessão da arquidiocese é um reconhecimento à importância da cultura popular, que pode estar relacionado ao crescimento das igrejas neopentecostais. Para ele, o samba da Estácio não deixou de lado o sincretismo.

— As igrejas evangélicas estão ocupando o espaço dos terreiros e casas de santo das comunidades, e a igreja católica enxerga isto. Não dava mais para ir contra o carnaval e atrapalhar a manifestação cultural. O samba da Estácio tem elementos facilmente identificáveis pelos iniciados: fala de feijoada, a comida de Ogum, e de axé, a energia da construção no candomblé. São referências pouco explícitas, mas profundamente respeitosas a todos os credos — enaltece.

O artigo original poderá ser visto por meio desse link aqui:


Que Deus tenha misericórdia de todos.

Alexandros Meimaridis


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